A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) regulamenta, no Brasil, as atividades de Pesquisa e Desenvolvimento nas empresas de geração, transmissão e distribuição de energia. As companhias são obrigadas a investir um percentual de sua Receita Operacional Líquida (ROL) em P&D e Eficiência Energética. Esta regulamentação, estabelecida no início dos anos 2000, vem promovendo uma cultura de investimentos em tecnologia e conhecimento pela aplicação, em seus primeiros 20 anos, de R$7,62 bilhões em projetos de P&D.
Nessas mais de duas décadas, foram estabelecidas importantes parcerias entre instituições de ciência e tecnologia, universidades e empresas de energia, que promoveram avanços importantes no conhecimento do setor em campos como geração de energia renovável (e.g. eólica, solar, biomassa, hidrelétrica, geração distribuída), tecnologias de transmissão e distribuição inteligente, entre outras.
Os resultados acadêmicos também são significativos. Até 2020, os investimentos pelo Programa propiciaram a capacitação de mais de 1.500 pesquisadores em especializações, mestrados e doutorados. Além disso, foram gerados mais de 300 patentes e registros de propriedade e publicados aproximadamente 4.800 artigos científicos em eventos e periódicos nacionais e internacionais (CASTRO et al., 2020).
Em relatório recente, o Fórum Econômico Mundial (2017) constatou que P&D e inovação representam um papel muito maior no desempenho econômico das empresas do que há 10 ou 20 anos. Há uma percepção crescente de que não existem mais arenas onde a disputa não envolva inovação – dos mercados tradicionais aos mais novos. P&D e inovação não mais se resumem à criação de novos produtos e serviços, mas envolvem, sobretudo, a transformação de processos, capacidades e negócios.
Nas organizações, a inovação costuma ser impulsionada por fatores internos, como a busca por resolver problemas ou aproveitar oportunidades, ou fatores externos decorrentes, por exemplo, de pressão econômica ou mudanças regulatórias. A atividade de PD&I apresenta-se, assim, como um elo estratégico da cadeia de valor que visa manter a organização no jogo e prover diferenciais competitivos. Essas estratégias, contudo, são influenciadas retroativamente pelo contexto regulatório, socioeconômico, ambiental e pelos atores envolvidos. Esta simbiose foi representada na figura abaixo adaptada de Pfitzner et al. (2014).
No setor elétrico, estas forças exercem pressão sobre as empresas de forma particular, pois os contratos de concessão garantem a continuidade das operações por longos períodos de tempo e a natureza de suas atividades inibem a concorrência, desestimulando a busca por diferenciais competitivos. Por isso, para compreender o que motiva uma empresa de energia a inovar, deve-se recorrer a imperativos como o interesse público, a eficiência operacional, a modicidade tarifária, a eficiência energética, a responsabilidade socioambiental, a conformidade regulatória e até a soberania nacional.
Os desafios que se apresentam às empresas de energia são inúmeros. Elas precisam lidar, por exemplo, com a adequação de suas operações às pautas ESG, com um movimento crescente de consolidação dos atores por meio de fusões e aquisições, com uma regulação estatal intensiva e presente e com a demanda crescente por uma nova matriz energética que comporte o desenvolvimento tecnológico. Esses movimentos pressionam as empresas do setor a buscarem inovações por meio de mais investimentos em pesquisa e transformação tecnológica.
A partir do segundo semestre de 2023, a ANEEL introduzirá uma profunda mudança no seu arcabouço regulatório por meio do PROPDI, que substitui o PROPED e estabelece os novos procedimentos do Programa de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação do Setor Elétrico Brasileiro. Por meio dele, a agência reconhece a dificuldade que as empresas do setor historicamente têm para direcionar os investimentos à inovação e busca superá-la pela regulação por incentivos baseada no estabelecimento de objetivos, metas e indicadores.
Pesquisas recentes (ALVES et al., 2020) junto às empresas do setor elétrico evidenciaram algumas características comuns das atividades de P&D que inibem o alcance das inovações tecnológicas. Fala-se, por exemplo, do foco no desenvolvimento de soluções para problemas internos e de curto prazo, na preterição de projetos que visem maior grau de inovação decorrente do receio de glosa dos recursos, na burocracia interna, em entraves no registro de patentes e softwares, na dificuldade em transformar protótipos em produtos e na subordinação da área de inovação e P&D à Diretoria de Regulação, o que pode indicar que os investimentos estejam sendo realizados primariamente motivados pela conformidade regulatória.
Em outras palavras, com o PROPDI, as empresas serão incentivadas a aumentar a aposta em projetos que visem a obtenção de resultados quantificáveis no curto prazo com potencial para a geração de benefícios diretos à sociedade, o aumento da eficiência econômico-financeira, o desenvolvimento de novos produtos e a inovação nos modelos de negócio.
Com esta mudança, abrem-se diversos precedentes – a introdução de ecossistemas de startups, corporate venture capital, metodologias para avaliar a prontidão tecnológica dos investimentos e novas formas de avaliar o desempenho do programa. Além disso, uma profunda mudança proposta estabelece um conjunto centralizado e amplo de objetivos de inovação para todo o setor, que devem nortear as prioridades dos programas de inovação de cada empresa em um esforço para direcionar os focos da inovação em um sentido comum a todo o setor.
Com o PROPDI, a ANEEL não deixa de reconhecer a relevância das pesquisas básica e aplicada posicionadas nos níveis mais elementares da escala de maturidade. Tanto é que não veda tal tipo de investimento. Contudo, a agência reconhece que projetos dessa natureza encontram barreiras para traduzir os resultados em benefícios diretos às empresas e à sociedade. Para tentar superá-los, revisou sua sistemática de estímulo e avaliação e passará a permitir o direcionamento dos investimentos a atores mais afeitos ao desenvolvimento de soluções a partir de um estágio de maturidade mais elevado, como startups.
Mas toda essa mudança simplesmente por que incluímos um I após o P&D? É sobre isso que vamos discorrer nos próximos posts dessa série. O desafio do setor elétrico no Brasil é, por meio dos investimentos em PD&I, obter resultados abrangentes e mensuráveis - inclusão social, redução de custos, acesso à energia, diversificação e eficiência energética, impacto ambiental. Nesse aspecto, a letra I faz toda a diferença.
Conteúdo escrito em co-participação com Heron Trierveiler
Referências
Investimentos em P&D e Eficiência somam R$ 13,5 bi em 20 anos. Canal Energia. Disponível em: <https://www.canalenergia.com.br/noticias/53141321/investimentos-em-pd-e-eficiencia-somam-r-135-bi-em-20-anos>. Acesso em: 4 jul. 2023.
DE CASTRO, Nivalde José; CASSIOLATO, José Eduardo; ROVERE, Renata Lèbre La; et al (Orgs.). Programa de P&D da ANEEL: Avaliação & Perspectivas. Rio de Janeiro: Publit, 2020.
PFITZNER, Mariana; SALLES-FILHO, Sergio Luiz Monteiro; BRITTES, José Luiz Pereira. Análise da dinâmica de P&D&l na construção do Sistema Setorial de Inovação de energia elétrica para o Brasil. Gestão & Produção, v. 21, n. 3, p. 463–476, 2014.